O Envolvimento Emocional e seus Impactos nos Investigadores de Crimes Contra a Vida da PJ (Por Pedro Maia)

A morte é um fenómeno natural que consiste na cessação das funções vitais de todos os seres vivos. Por instinto de sobrevivência, inato, todos os seres vivos tendem a prolongar a vida até ao limite das suas possibilidades.

O Homem, como ser racional e emocional, associa também as suas emoções ao processo que envolve a sua finitude, surgindo então uma carga extremamente negativa em relação à finitude, quer seja em relação a si próprio, quer seja em relação a terceiros.

A morte ou a finitude da vida é, por regra, um tema tabu entre os seres humanos e, muitas vezes, o Homem age na vida como se fosse viver para sempre.

A morte é o desfecho esperado para todos os seres vivos, tratando-se de um fenómeno natural, através do envelhecimento celular, mas que muitas vezes é antecipado pela ação de terceiros quer seja de natureza criminosa ou não.

É neste contexto da morte de seres humanos por ação criminosa de terceiros que se desenvolve a ação profissional dos investigadores da Polícia Judiciária que se dedicam à investigação de crimes de homicídio.

Existem muitos estudos acerca do impacto psicológico nos profissionais de saúde em relação ao “luto profissional”, ou seja, em relação à morte de pacientes a quem os profissionais dedicam o melhor do seu saber e da sua entrega incondicional, que revelam que estes profissionais acabam por criar mecanismos de autodefesa que levam à denominada “profissionalização” da morte.

Na área da investigação criminal relacionada com os crimes de homicídio, não existem muitos estudos, atrevendo-me a referir que os resultados não haveriam de diferir muito dos resultados em relação aos resultados dos estudos que envolvem os profissionais de saúde, ou seja, a criação, muitas vezes inconsciente, de mecanismos de autodefesa, relativamente ao sofrimento das vítimas (no caso dos homicídios tentados) dos seus familiares e amigos (no caso dos homicídios consumados), mas também em relação aos familiares e amigos dos autores dos crimes que também sofrem (e muito) com as consequências jurídico-penais que se abatem sobre os autores dos crimes.

Nesta área da investigação criminal, todos os intervenientes processais, quer sejam vítimas e respetivos familiares e amigos, arguidos e seus familiares e amigos e testemunhas têm associada uma enorme carga emocional caracterizada por tristeza, sofrimento e privação, que necessariamente, influencia os investigadores criminais.

Constitui um traço comum a todos os investigadores que iniciam funções na secção de investigação de crimes de homicídio: uma relutância inicial na realização dos exames aos locais de crime, dos exames do hábito externo do cadáver (observação minuciosa da face externa do cadáver) que progressivamente se vai atenuando, passando o cadáver a ser percecionado como um objeto de trabalho, não por insensibilidade dos investigadores, mas por ação de mecanismos psicológicos de autodefesa que funcionam ao nível do subconsciente individual e que vão permitindo a realização das tarefas com a objetividade necessária.

À medida que os casos se vão somando na experiência profissional dos investigadores, esta perceção do cadáver apenas como objeto de trabalho vai-se acentuando, embora haja situações em que as emoções se acentuam face à objetividade da ação, como são por exemplo os casos de crimes de homicídio que envolvem crianças, que envolvem um contexto de sofrimento humano que a vítima vivenciou e ainda quando a investigação incide sobre a recolha de informação acerca da vida da vítima e se torna necessário chegar ao contacto direto e pessoal com os seus familiares, amigos e outros entes queridos.

Uma outra circunstância difícil para os investigadores é a comunicação da notícia da morte de uma determinada pessoa aos seus familiares diretos e ou amigos, quando essa notícia é uma (má) novidade.

Em muitas situações, é necessário que o investigador criminal aja como um amparo essencial num momento extremamente difícil do familiar ou amigo que recebe a notícia da morte de um seu ente querido.

Em algumas situações é necessário providenciar por apoio psicológico especializado por equipas de psicólogos do INEM que é necessário acionar.

Nestas circunstâncias, ao investigador criminal pede-se mais que a sua competência profissional, requer-se humanismo e capacidade de percecionar o sofrimento do outro e disponibilidade para o auxílio necessário, sem nunca perder a objetividade quanto à informação que é necessário recolher para o esclarecimento do crime ocorrido e para a recolha do suporte probatório necessário que leve à identificação e condenação do(s) seu(s) autor(es).

De um modo geral posso referir, fazendo aqui apelo à experiência que possuo, que os investigadores da Polícia Judiciária que desempenham funções na investigação de crimes de homicídios acabam por se adaptar com alguma facilidade a estas condicionantes e tornam-se investigadores com muita objetividade para a investigação deste tipo de crime mas, simultaneamente, com muita sensibilidade, compreensão e capacidade de adaptação para entenderem a fase de luto dos familiares e amigos das vítimas e para conseguirem recolher as informações necessárias da parte destes numa fase muito difícil e de grande fragilidade emocional; e ainda para entenderem as angústias e fornecerem todo o apoio possível aos familiares dos suspeitos de autoria da prática dos crimes e também dos próprios autores dos crimes, de modo a que ninguém fique desamparado e entregue a si próprio face ao sofrimento que sobre eles recaiu.

Normalmente, os investigadores que desempenham as suas funções na investigação de crimes de homicídio, fazem-no por muitos anos, caso contrário, não se adaptando às exigências, sobretudo psicológicas da função, acabam por sair para outras áreas da investigação criminal. Não resta qualquer dúvida que a carga emocional e psicológica para os investigadores de crimes de homicídio ou de outros crimes relacionados com o sofrimento ou a liberdade humanas, como sejam os casos dos crimes de ofensa à integridade física, de rapto, sequestro, escravidão, terrorismo, entre outros, é um ónus muito maior relativamente aos investigadores de outras áreas criminais, existindo uma particularidade que gostaria de partilhar com o leitor.

Não conheço nenhum investigador criminal da Polícia Judiciária que tenha trabalhado ou ainda exerça as suas funções na secção de investigação de homicídios que não se recorde ao pormenor das circunstâncias em que determinado crime de homicídio ocorreu, como sejam o local, a data, a identidade da vítima e outras particularidades, relativamente a crimes em que não foi possível determinar a respetiva autoria, constituindo-se como autênticas feridas que permanecem abertas na mente dos investigadores, não como uma penitência, mas como um caso não resolvido e que continua pendente, em primeiro lugar para os familiares e amigos da vítima e, logo depois, para os profissionais da investigação criminal que tentaram o seu esclarecimento.

Nestas circunstâncias, o ciclo do luto por parte dos familiares e amigos da vítima, mas também dos profissionais da investigação criminal que lidaram de perto com a investigação das circunstâncias da morte daquela pessoa concreta, não fica fechado. E é precisamente por isso que os investigadores se recordam dos pormenores mais marcantes da investigação.

Sou da opinião que o investigador criminal na área dos homicídios também efetua o chamado luto profissional das vítimas das suas investigações e só considera a sua tarefa concluída quando consegue o esclarecimento cabal das circunstâncias de modo, tempo, lugar e autoria do crime ocorrido e a consequente punição do(s) seu(s) autor(s).

Em termos pessoais sempre poderei adiantar que ingressei na secção de investigação de crimes de homicídios na Diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária em janeiro de 2002 e desde então que me mantenho nesta área da investigação criminal.

Trata-se de uma tarefa nobre, pois relaciona-se com a investigação de crimes graves contra as pessoas, sendo esta tipologia criminal que é mais severamente punida pelo nosso ordenamento jurídico-penal.

Pessoalmente, nunca senti muito conforto em relação ao fenómeno da morte, sendo para mim uma questão difícil de aceitar, apesar de ser o desfecho natural de todo e qualquer ser vivo.

Ao iniciar funções na secção de investigação de crimes de homicídios pensei para mim mesmo que seria também uma oportunidade para desmistificar um pouco o fenómeno da morte e da finitude, apesar de, no contexto criminal, a mesma se revelar mais traumática precisamente pelo facto de ser determinada por intervenção criminosa de terceiros.

Enganei-me. Continuo a não conviver bem com o fenómeno da morte. Todavia, no início existem sempre receios quanto ao impacto psicológico que resulta da observação e processamento de locais de crime com cadáveres, da observação e manuseamento do próprio cadáver para realização do exame do hábito externo, da observação “in loco” de autópsias médico-legais, do contacto direto com os familiares e amigos das vítimas de crimes de homicídio e, de facto, nos primeiros tempos esta abordagem foi difícil, sobretudo em termos psicológicos.

Não é fácil para ninguém observar, manusear, investigar, falar com familiares de vítimas que horas antes estavam vivas tal como nós, e pensar que também nos pode suceder a qualquer momento semelhante infortúnio.

A “carga” emocional associada aos casos é enorme, causando stress, excitação e sobretudo um peso acrescido sentido por cada um de nós, “à sua maneira”, sobre a responsabilidade de contribuirmos ativamente com o nosso trabalho para o esclarecimento do crime que leve à identificação e punição do(s) seu(s) autor(es).

À medida que vamos prosseguindo com a realização de tarefas relacionadas com a investigação dos crimes de homicídio, vamos desenvolvendo mecanismos psicológicos defensivos e de autoproteção para conseguirmos lidar com o sofrimento humano de terceiros.

Não é que nos tornemos insensíveis, mas vamos criando, ao nível do subconsciente, mecanismos de defesa que nos permitem uma abordagem o mais objetiva e profissional possível, perante cenários e circunstâncias de grande emotividade de conteúdo negativo e triste.

Digo que este mecanismo psicológico de proteção é reversível, porque na atualidade, exercendo ainda funções na seção de investigação de homicídios, mas num plano mais recuado em relação ao contacto direto com os cenários criminais, com os cadáveres, e com os intervenientes processuais, com particular destaque para os familiares e amigos das vítimas, dou por mim e evitar observar nos processos, fotografias dos cadáveres, sobretudo de crianças, mas também aquelas que nos transmitem um estado de sofrimento e agonia da vítima nos momentos que antecederam a morte, bem como os relatos de angústia dos familiares das vítimas, ao verem-se privados, por ação de terceiros, de um ente querido.

Então, penso para mim que voltei a encontrar o meu equilíbrio emocional e tenho a certeza de que os sentimentos e as emoções mais nobres nunca nos abandonam, apenas ficam mais protegidos por ação de mecanismos psicológicos de autoproteção para podermos desenvolver o nosso trabalho da forma mais objetiva possível.

Costumamos dizer na secção de investigação de homicídios, como imperativo psicológico e também de ação que “nenhum caso de homicídio ficará por resolver”.

Claro que é apenas um “cliché”, todavia funciona como força interior que nos impele a fazer tudo que esteja ao alcance da nossa vontade, esforço e das ferramentas técnicas e jurídicas disponíveis para que os casos de homicídio sejam esclarecidos.

No fundo, o que queremos incutir nos investigadores é o seguinte pensamento e correspondente ação: “devemos ter sempre a consciência tranquila quanto ao esforço empreendido, pessoal e coletivamente, para o esclarecimento de um crime de homicídio”, o que não implica, malogradamente, o seu esclarecimento.

O investigador de crimes de homicídio tem necessidade desta paz interior quanto ao esforço empreendido para conseguir continuar a trabalhar nesta área da investigação criminal e para conseguir dizer com a cabeça bem levantada e o olhar fixo nos seus interlocutores, que são muitas vezes os familiares e amigos das vítimas, que apesar de não ter sido possível o esclarecimento das circunstâncias do crime e a identificação do(s) seu(s) autor(es), foram empreendidos todos os esforços, recursos e as diligências possíveis para obter tal resultado.

É uma paz interior que cada investigador necessita de ter para continuar a trabalhar nesta área e para fechar o processo relativo ao luto profissional, que também é encerrado de uma forma mais positiva com o esclarecimento dos casos e a punição do(s) seu(s) autor(es).

Porque na investigação de crimes de homicídio não podemos ousar dizer como em tantas outras circunstâncias das nossas vidas “… deixa lá … a vida continua … felizmente não morreu ninguém!

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Autor: Pedro Maia – Coordenador de Investigação Criminal da Polícia Judiciária.

ASFIC PJ DEATHCLEAN

** Este artigo faz parte integrante da revista BioHazMag lançada em outubro de 2022.

 

PALAVRAS-CHAVE: Investigadores; Investigação; Polícia Judiciária; ASFIC; Morte; Homicídio; Crime; Criminal; Luto Profissional; Emocional; Psicológico; Vítima.